FONTE: JOTA

Tese de responsabilização poderia levar a uma radical mudança de modelo de negócio das plataformas

julgamento
Prédio da Suprema Corte dos EUA. Crédito: Unsplash

A Suprema Corte dos Estados Unidos começou em fevereiro o julgamento de Gonzalez v. Google – sem dúvida o caso mais importante da história da internet. Na pauta está a seção 230 Communications Decency Act of 1996, o equivalente ao artigo 19 do nosso Marco Civil da Internet – dispositivos simbolicamente chamados safe harbour, o porto seguro de provedores de aplicações na internet e premissa fundamental da economia digital.

A atual legislação sobre o assunto dispõe que “nenhum provedor ou usuário de um serviço de computador interativo será tratado como editor ou autor de qualquer informação fornecida por outro provedor de conteúdo de informação”. Com essas palavras, o Legislativo dos Estados Unidos fixou o modelo global para a regulação da internet: as plataformas nas quais as pessoas e empresas se manifestam não se confundem com seus usuários. A imunidade é ampla: o conteúdo das redes não impacta os criadores e operadores das redes.

No Brasil, o Marco Civil da Internet de 2014 previu, analogamente, que “o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente” (art. 19, parte). Exceções pontuais com regras mais rigorosas existem para casos de exploração de nudez alheia (art. 21) e direitos autorais (art. 31).

No Brasil, o leading case para a constitucionalidade do Safe Harbour é o RE 1.037.396. Relatado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, o julgamento foi colhido de diversas intervenções de amici curiae e está suspenso desde setembro do ano passado. Com a perspectiva de julgamento de Gonzalez v. Google até junho, é muito provável que nosso tribunal dialogue com o precedente americano.

Qual o desafio de fundo?

A extensão e natureza dos efeitos do uso da internet certamente não estavam previstos em 1996. Dizer isso é, em alguma medida, uma obviedade, quando se tem em conta o que era a internet em décadas passadas. Quando o Safe Harbour americano foi criado, a internet estava em sua primeira infância como ferramenta do grande público: apenas 9,5 milhões de americanos usavam a internet regularmente, metade dos quais se tornara usuário nos 12 meses anteriores. Conexões por telefone tornavam o tráfego de dados mais lento e mais caro. Não havia um real mercado digital: a busca do Google seria lançada apenas 2 anos depois e o Facebook, oito anos mais tarde.

A internet de hoje, impensável naquele tempo, alavanca porções centrais da economia global, além de ter facultado a conexão e a organização de grupos sociais em exercício de liberdades civis. Em 2014, dez anos depois do lançamento do Facebook, a Deloitte já estimava que US$ 227 bilhões e 4,5 milhões de empregos fossem fruto da intervenção dessa plataforma na economia global. Em 2021, o Google reportou incríveis US$ 617 bilhões de atividade econômica a partir de suas atividades apenas nos Estados Unidos.

Obviamente, nem tudo foram flores. Uma reportagem investigativa do New York Times, transformada na série de podcast Rabbit Hole, ilustrou a longa trajetória de radicalização de pessoas por meio das chamadas câmaras de eco (echo chambers) criadas por algoritmos. Alimentados por vídeos sugeridos sempre com a mesma orientação política ou social, os usuários se viam dragados, inconscientemente, a um ambiente de informação monolítica, sem nuance ou divergência.

O mesmo fenômeno já havia sido apontado por Eli Pariser em sua obra “O filtro invisível” (2011), na qual descreve como a filtragem da informação nas mídias sociais permite a criação de filtros-bolha por meio de técnicas de mídia direcionada mediante a coleta de dados pessoais e da criação de perfis, fazendo com que os usuários sejam expostos apenas a conteúdos que lhes sejam afins, de modo a influenciar suas ideias, opiniões e comportamento.

A soma dos efeitos desse fenômeno resultou em desinformação ou em discursos de ódio. Algumas notícias são exemplos disso. Uma delas mostra que 20% do conteúdo de uma rede social estava relacionado à desinformação sobre a Covid-19. Outra informa o possível uso de uma rede social pela ditadura de Mianmar como ferramenta para perseguição de minorias. Os grandes atores da internet global não negam que haja problemas não previstos. E estão verdadeiramente empenhados em fazer parte da solução. Em cada um dos grandes provedores de aplicações é possível encontrar páginas de prestação de contas com times transnacionais dedicados ao combate à desinformação, ao discurso de ódio, à exploração infantil e a outras atividades ilícitas.

Mark Zuckerberg, pessoalmente, sinalizou que entendia ter chegado o momento de atualizar a Section 230 – com o que ecoou, na política americana, em um aparente consenso entre democratas e republicanos, para além de vozes em veículos importantes como a Harvard Business Review.

O problema não parece ser tanto se, mas como assegurar que os efeitos positivos da revolução digital não sejam manchados pelos problemas que inegavelmente surgiram. Na falta de resposta legislativa, as cortes foram chamadas a atuar.

Em que consiste o julgamento?

Nohemi Gonzalez, uma jovem de 23 anos, era uma intercambista da Universidade do Estado da Califórnia em Paris em 2015. Em novembro daquele ano, eclodiu na França uma série de ataques terroristas coordenados, fruto da barbárie do Estado Islâmico, que colheu a vida de mais de 130 pessoas. Nohemi foi uma dessas vítimas.

Para a família Gonzalez, a morte de Nohemi vai além de uma tragédia: seria fruto de uma prática de negócios online que promoveria a radicalização. A teoria é de que o YouTube, plataforma de vídeos do Google, recomendaria ativamente aos seus usuários vídeos com conteúdo radical com o resultado prático de fomentar ataques terroristas. É verdade que vídeos de conteúdo terrorista foram veiculados no YouTube. Contudo, não há nos autos da disputa evidência de que esse conteúdo tenha desempenhado papel na radicalização dos terroristas de Paris.

A posição do Google é de que a legislação protege a companhia de qualquer responsabilização por conteúdo postado por usuários, ainda que sugerido ou impulsionado por algoritmos da plataforma. Vale dizer: sejam os algoritmos “neutros” (a plataforma sugere conteúdo análogo ao já pesquisado pelo usuário, valendo-se de dados pessoais coletados dentro e fora da plataforma), sejam os algoritmos “direcionados” (a plataforma sugere proativamente conteúdo ao usuário, independentemente de este ter buscado), os provedores de aplicações desfrutariam de ampla imunidade.

A família contra-argumenta afirmando que promoção de conteúdo constitui efetivo discurso e não simples hospedagem. Segundo essa tese, quem impulsiona necessariamente apoia, promove, eleva e dá credibilidade. Levada ao extremo – como ocorreu nos debates orais do julgamento –, a tese poderia admitir o simples apontamento de resultado em uma busca feita pelo usuário como causa de responsabilidade, já que a lista de conteúdos é sempre customizada pelo algoritmo da plataforma (por exemplo, levando em conta a localização, idade e preferências do usuário).

O que será a internet depois do julgamento?

Diversamente do que ocorre no Brasil, debates orais na Suprema Corte dos EUA incluem discussões entre os julgadores (Justices) e os advogados. Das três horas de debates que marcaram o início do julgamento, duas tendências apareceram com clareza: a frustração dos Justices com a ausência de um “caminho do meio” claro para uma interpretação temperada da Section 230, e seu justificado receio em impactar a economia digital.

Acolhida na versão mais radical, a tese de responsabilização poderia levar a uma radical mudança de modelo de negócios de plataformas eletrônicas, com impactos econômicos e sociais não medidos. Felizmente, esse parece um resultado pouco provável – seja nos Estados Unidos, seja ainda no Brasil.

Em uma tradição de construção normativa por precedentes, não é raro que a Corte fixe balizas amplas – como seriam as cláusulas gerais, no Direito brasileiro – para a atuação e responsabilização dos provedores. Se isso acontecer, a expectativa é de que as melhores práticas já em curso sejam razoavelmente espelhadas pelo tribunal, resultando sobretudo numa mudança de paradigma para pautar novos atores do mercado do que impactos concretos para as grandes empresas hoje dominantes no cenário mundial.

Qualquer que seja o desfecho – e mesmo que este seja a possível ou provável rejeição integral do recurso, confirmando a normativa hoje vigente –, a internet não será a mesma depois deste julgamento. A solidificação, ajuste ou rejeição do Safe Harbour pautará agentes econômicos, advogados e juízes pelos próximos anos.

JULIO NEVES – Sócio da prática de Resolução de Disputas do Lefosse
PAULO LILLA – Sócio de Tecnologia, Proteção de Dados e Propriedade Intelectual do Lefosse

Categorias: SINDRATARPE

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